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O Irã numa casca de pistache

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Este artigo foi publicado primeiramente no Sundaycooks - Experiências incríveis de viagem, roteiros e dicas para suas férias. Se você viu ele em outro lugar, por favor denuncie aqui

Dizem que o Irã é dificílimo de ser compreendido por alguém que não seja um iraniano ou que não viva lá por muito tempo. E eu acredito muito nisso.

Gabriel Prehn Britto (CC BY-NC-SA 2.0)

O correspondente da Folha de São Paulo em Teerã, Samy Adghirni, por exemplo, até já recomendou que seus leitores “desconfiem de quem diz que entende de Irã” e afirmou que ele mesmo “continua engatinhando” na compreensão do país – apesar de trabalhar com isso e já viver na capital iraniana desde 2011.

Ainda que a tarefa de entender os iranianos seja quase impossível, saber um pouco da história do país e do pensamento geral da população ajuda na compreensão mínima de algumas coisas. Principalmente, ajuda a apagar preconceitos.

Foi por tudo isso que resolvi fazer um post sobre estes assuntos antes de seguir adiante nos relatos da minha viagem por lá. Mas veja bem: é um resumo do resumo do resumo do resumo de tudo. É apenas um sopro de história. Mas vai ajudar a clarear algumas coisas para você. Acho.

Pegue um café, preste atenção e me avise se houver alguma bobagem, por favor. Não é difícil se perder em milênios persas.

*****

A ocupação humana no território onde hoje é o Irã começou há 10 mil anos, mas não vou nem chegar perto de relatos dessa época, até porque eles são poucos.

Para o mundo, o Irã que conhecemos nasceu de verdade há 4 mil anos, quando tribos arianas (basicamente persas e medos), vindas da Ásia Central, chegaram à região em busca de segurança e de novos recursos naturais.

Possível caminho dos arianos até o Irã

Essas tribos se espalharam por toda a área e ficaram assim por muito tempo. A união delas sob um mesmo reino só aconteceu no ano de 559 a.C., graças a um homem que já foi citado muitas vezes aqui e que certamente vai ser citado várias outras: Ciro, o Grande.

Relevo de Ciro, em Pasárgada (Foto: Marcia Steyer – Todos os direitos reservados)

Ciro era um grande estrategista militar e logo começou a expandir os domínios do seu reinado. Pouco a pouco foi conquistando tudo que estava ao seu redor, chegando a ter 23 povos sob o seu comando, todos tratados com o máximo possível de liberdade e respeito às suas próprias culturas – característica que rendeu a fama de benevolente que Ciro tem até hoje.

Era o início do Império Persa, a primeira superpotência que o mundo conheceu, batizado assim por ter se expandido a partir da região original de Ciro, chamada de Pars.

Localização de Pars dentro do Irã de hoje (Nima Farid – CC BY-SA 3.0)

Esse império seguiu firme e forte sob o comando dos sucessores de Ciro, reis do calibre de Dario e Xerxes, e chegou a tomar conta de territórios onde hoje estão Iraque, Paquistão, Afeganistão, Turcomenistão, Uzbequistão, Tadjiquistão, Turquia, Jordânia, Chipre, Síria, Líbano, Israel, Egito e a região do Cáucaso.

O Império Persa no seu auge

A duração do Império foi longa, mas ele acabou perdendo a força ao longo dos séculos até ser enterrado por Alexandre, o Grande, que invadiu a Pérsia em 334 a.C. e tocou fogo em Persépolis, a capital cerimonial do império. Ainda não se sabe se Alexandre queimou tudo por descuido durante a comemoração da vitória ou se por retaliação por uma antiga destruição de Atenas por Xerxes.

Àquela altura, porém, um componente já estava enraizado na vida dos persas: o zoroastrismo, a religião do profeta Zoroastro, seguida por gerações de reis e pela maior parte dos súditos.

Faravahar, símbolo do zoroastrismo, nas ruínas de Persépolis (Foto: Marcia Steyer – Todos os direitos reservados)

O zoroastrismo, criado séculos antes (falarei mais sobre ele em outro post), inseriu muitas ideias na mentalidade persa, mas três foram ainda mais especiais para a formação do Irã:

1) Os líderes do povo são representantes de deus na Terra. Mas eles só merecem lealdade enquanto mantêm sua “força divina” (chamada de “farr”);

2) Os cidadãos têm direito a governantes esclarecidos;

3) A população é obrigada a respeitar seus líderes, mas também é obrigada a se revoltar quando eles saem do “reino da luz” para o “reino das trevas”.

Os mil anos seguintes à queda da primeira dinastia de reis persas foram de altos e baixos.

Em um dos momentos baixos, em 641 d.C., aconteceu algo que mudou a vida deles para sempre: a invasão árabe e a consequente imposição do Islã como a religião do reino.

Batalha de al-Qadisiyya

Sem chances de enfrentar a força gigantesca dos novos conquistadores, os persas baixaram a cabeça e assimilaram o islamismo, porém usando uma capacidade que eles mantêm até hoje e da qual se orgulham muito: a de misturar as novidades estrangeiras com os seus próprios hábitos.

O solo fértil para esta mistura foi o xiismo, um ramo do islamismo que tem uma visão própria sobre quem é o verdadeiro sucessor de Maomé. Como o xiismo ainda era algo novo, não foi difícil para os persas incluírem nele interpretações totalmente inspiradas no zoroastrismo.

Foi assim que, apesar de virarem muçulmanos, eles conseguiram se manter diferentes dos conquistadores árabes, os quais consideravam nada mais do que brutos sem cultura.

Mesquita Sheikh Lotfollah, Esfahan – Gabriel Prehn Britto (CC BY-NC-SA 2.0)

A história do xiismo também é longa e vai ser abordada em outro post. Mas uma característica especial dele é crucial para entender um pouco do Irã atual e precisa ser explicada aqui: a necessidade de sofrer e de se entregar à religião com toda a paixão possível.

Para os xiitas, Ali e Hussein, os dois primeiros sucessores de Maomé, mortos por seguidores do ramo majoritário do islamismo, são mártires que se sacrificaram em uma luta contra lideranças que buscavam apenas o poder na Terra e ignoravam a pureza da alma. Lideranças que, de acordo com os ensinamentos do zoroastrismo, haviam perdido sua força divina e, portanto, o seu direito de governar.

Estes sacrifícios serviram de exemplo de como os fiéis devem viver e se dedicar à religião e são a fonte de todas as cenas de fervor que vemos até hoje em rituais xiitas por aí.

Cerimônia da Ashura, em Yazd – Gabriel Prehn Britto (CC BY-NC-SA 2.0)

Depois que o Império Árabe começou a ruir, outros conquistadores entraram na Pérsia – Gêngis Khan entre eles – mas acabaram sumindo após algum tempo, sem grandes nomes ou feitos marcantes. Então, em 1501, um novo rei foi coroado e seu primeiro ato como monarca foi declarar o xiismo como a religão oficial do estado.

Era a consolidação dos persas como uma nação unida por aspectos históricos, culturais, religiosos, geográficos, linguísticos e políticos.

Vieram mais alguns séculos de altos e baixos, até que uma nova dinastia chegou ao poder para marcar a história do país. Mas, ao contrário das lembranças ligadas a Ciro, Dario e Xerxes, desta vez a marca deixada foi extremamente negativa.

A dinastia qajar tomou o trono persa no final do século 18 e não deu a menor atenção para a população. Enquanto o mundo inteiro avançava, seus reis só queriam saber de safadeza, poder e dinheiro. E vendiam, em benefício próprio, tudo que conseguiam, principalmente para Rússia e Grã-Bretanha, as grandes potências imperiais da época.

Assim as indústrias, os bancos e até o fumo e o caviar persa, entre muitos outros setores econômicos do país, foram entregues a ingleses e russos.

Xá Nasir al-Din, em encontro com a família real britânica, em Londres

Os qajar acabaram caindo por pressão popular, já que haviam perdido a sua força divina quando se atiraram no luxo e na ganância, mas o estrago já era irreversível. Eles já haviam feito a venda que serviu de estopim para tudo que acontece de ruim no Irã hoje: o direito à exploração de gás e petróleo, comprado pelos britânicos em um contrato de 60 anos.

Àquela época, a Pérsia já tinha recebido alguns ventos de democracia e recém estava aprendendo a conviver com um parlamento feito por representantes do povo. Foi nesse parlamento, em 1906, que surgiu Mohamed Mossadegh, um dos maiores líderes dos 4 mil anos de história persa e símbolo de democracia e justiça no país até hoje.

Mossadegh, advogado de formação, era um nacionalista incondicional e comprou uma briga extremamente feia com os britânicos, ao longo da sua carreira longa e fantástica na política. Ele exigia que o petróleo persa rendesse mais ao seu povo miserável e não apenas à Grã-Bretanha, que extraía barris aos montes, pagava royalties ridículos, não permitia auditorias e, principalmente, tratava os empregados iranianos como subumanos, negando a eles os direitos mais básicos que você possa imaginar.

Com toda a experiência colonialista que tinham, os britânicos mantinham o controle sobre o petróleo alheio manipulando políticos e líderes corruptos, pagando propinas, oferecendo poder a aliados e até ameaçando qualquer país que apoiasse a Pérsia. Eles eram tão bons nisso que, em 1941, conseguiram colocar no trono um rei praticamente seu: o xá Mohamed Reza, um playboy cujo pai (o ex-xá) havia mudado o nome do país de Pérsia para Irã, anos antes.

Reza numa antiga nota de 1000 rials (Iran Persian Gulf Forever – CC0 1.0)

A luta entre Mossadegh e os britânicos piorou quando o iraniano foi eleito primeiro-ministro do país e partiu para cima da companhia de petróleo inglesa (Anglo-Iranian Oil Company, atual BP) nacionalizando totalmente a empresa.

Liderados por Churchill, ofendidos e loucos para invadir o Irã como se o país fosse apenas um pedaço de terra da rainha, os ingleses pediram ajuda aos americanos, que até então mantinham ótimas relações com o Irã e eram muito admirado pelos iranianos.

Os Estados Unidos demoraram, mas acabaram cedendo aos apelos dos britânicos e consolidaram aquele que seria o primeiro golpe de estado patrocinado pela CIA: em 1953, a Operação Ajax derrubou Mohamed Mossadegh do cargo de primeiro ministro, abrindo espaço para um político pau-mandado e entregando o poder absoluto ao xá playboy Mohamed Reza.

Vale lembrar: Mossadegh, que acabou morrendo em prisão domiciliar em 1967, havia sido eleito democraticamente.

Sem mais nenhum grande inimigo interno e com o apoio de Grã-Bretanha e Estados Unidos (que naquele momento dividiam 80% do petróleo iraniano), o xá iniciou uma ditadura ferrenha que gastava rios de dinheiro enquanto a população seguia pobre e a economia enfrentava até desabastecimento de comida.

No fim dos anos 70, cansados dos excessos do xá e seguindo os discursos de um líder religioso xiita carismático e forte (ele: o aiatolá Khomeini), os iranianos derrubaram Mohamed Reza, que fugiu e foi acolhido pelos Estados Unidos.

Teerã – Gabriel Prehn Britto (CC BY-NC-SA 2.0)

A nova revolução era a esperança do povo iraniano para um país totalmente livre e até parecia que daria certo no início. Khomeini se cercou de homens ligados a Mossadegh e um admirador do antigo primeiro ministro chegou a ser eleito presidente da nação. Mas a maré virou depois de um tempo e os líderes religiosos começaram a implementar a linha dura.

Ali nascia o Irã de hoje. Um país que ainda luta internamente para combinar a história de glórias, o orgulho persa, a inteligência, a sensibilidade, as crenças religiosas, a ambição por governantes justos e a quarta maior reserva de petróleo do planeta.

Um lugar incompreensível e, justamente por isso, fascinante.

 

As fontes de pesquisa para este post são a minha recomendação para quem quiser saber bem mais sobre a história iraniana:

Todos os Homens do Xá, de Stephen Kinzer. Editora Bertrand Brasil

Guia Lonely Planet Iran

Revista National Geographic Brasil, número 101 – AGO/2008

O Atlas do Oriente Médio, de Dan Smith. Editora PubliFolha

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